Cadernos do Davi

por que pássaros?

Desde marzo que quiero decir algo
del pájaro fragata. Ahora es junio.
(sombra, de laura wittner, em Tradução da Estrada)

The only thing I knew how to do
Was to keep on keeping on, like a bird that flew
(Tangled up in blue – dylan)

Ainda não tive a sorte de ver o pássaro fragata, mas mais que meses, estou há anos tentando dizer algo a propósito de aves. Na outra extremidade da mesa comprida me perguntaram sobre cotovias. Depois emendaram, Por que pássaros, Davizão? Improvisei qualquer abobrinha na hora. Então passei alguns dias ruminando. Aqui estão as duas ou três coisas que me interessam neles.

Sou se muito ornitólogo aprendiz, de autodidatismo diletante e catalogação displicente. Faço poucas trilhas no mato ou caminhadas pela cidade com o propósito de observá-los. Tiro fotos dos que consigo ver da janela, cada vez mais raros com as obras ininterruptas dos últimos anos, que levaram quase todas as árvores e botaram concreto no lugar. Não é autoevidente? Me interesso por seus cantos, suas penas e formas, cores e hábitos alimentares. Gosto de que antes de avistá-los a observação se dá pelos ouvidos – minutos com as mãos na testa a encarar árvores em contra-plongée – e eu, que pouco entendo de música, dispenso a teoria e aprecio apenas.

Estendendo diria que é porque olhar de perto seus pés é perceber o parentesco com os antepassados jurássicos – como é egocêntrico o Antropoceno – egoísmo e egocentrismo, os motivos da perpetração da espécie.

Porque quando eu ainda era menino, no quintal dos meus avós, meu pai apontou um alma-de-gato no muro e ele pulou como felino pra jabuticabeira. (Custou alguns anos até eu vê-lo de perto, reparar em seus olhos avermelhados e nos pontos brancos na extremidade de suas penas cor de ferrugem – seu voo esticado como leque. O dia melhora sempre que os avisto.)

Nesse mesmo quintal meu avô criava algumas dúzias de pássaros: azulão, curió, canário-chapinha, patativa, pintassilgo, canário-belga, o papagaio Loro (invadiram a casa e de tudo levaram apenas ele). Vovô emprestava o alçapão pros netos prenderem rolinhas, tomava conta de nossas codornas durante as viagens de férias escolares. E a calopsita Tequila, apelidada Calô, que herda as cascas e pedaços das minhas frutas desde 2009, será o último pássaro que manterei em cativeiro. Isso eu prometo: minha última iteração de jumento criando passarinho na gaiola.(Ao menos nunca os acertei com estilingue. Mesmo com este nome, graças a Deus, sou ruim de mira e de lira.)

Porque, apesar das apropriações heráldicas, as aves zombam das fronteiras nacionais. E pra não me esquecer que Ícaro também voou, que é essa a metade mais importante do mito. "Qualquer coisa que valha a pena ser feita, vale a pena ser malfeita."

Pois assim como o mundo parece mais saliente após a primeira aula de geometria espacial, ou as fachadas e platibandas mais coloridas passados meses em lockdown, também a paisagem sonora se enriquece quando os genéricos sons de pássaros se tornam especificamente o bom-dia do bem-te-vi em seu ninho no poste, a algazarra das maritacas, o arranhado dos tucanos no prédio azul, a teimosia do pica-pau que justifica o caos do velho desenho animado, o lamento da araponga madrugada afora.

Porque como propôs Manoel de Barros "a importância de uma coisa há de ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes". E pela maior parte da vida andei olhando pro chão, arrastando os pés. Agora nefelibata perambulo.

Sim moramos no hemisfério sul, é verdade, e como respondi à cantora neozelandesa por e-mail aquela vez, seria um desperdiço não prestar atenção, sobretudo nas estações em que tantas espécies nos visitam, quando a situação aperta lá em cima – aliás a situação anda apertando em todo canto – o calor se democratiza. Por ora migram. Aproveitemos.

Também temos, aqui no Brasil, o wikiAves, que é feito por amadores, nas duas acepções da palavra: mantido com amor e por fotógrafos e sonidistas não profissionais. (Ainda acredito na internet colaborativa e aberta, um pouco menos a cada dia.) E poucas obras de arte alcançam a beleza de uma revoada. Não me deixem morrer sem que eu veja, com esses olhos fatigados de tanto encarar telas, uma revoada. Uma vez vi um urutau disfarçado em madeira.

Finalmente porque amigos me presenteiam com marca-páginas ou postais de pássaros. Me enviam fotos e perguntam espécies quando viajam. Encaminham os vídeos que o algoritmo aterrissa em seus feeds. E quando eu tiver um quintal, comprarei um sensor de movimento e configurarei o raspberry pi pra replicar este vídeo – me contentaria até com uma varanda. Por enquanto cá estamos, nós e os pássaros, ofereçamos no mínimo nossa atenção.

Cadernos do Davi


Agradeço a Débora, o Tiago e o Douglas pelas leituras generosas. e ao Dani Brígido pela pergunta


p.s., deixei no cabeçalho, mas vale o aviso aqui também. Tô com a ideia de uma hipotética newsletter. se inscreva se interessar.

#crônica