Cadernos do Davi

fotofobia

Era no tempo do Rei (do Pastel). Cedo demais para ter sido a primeira opção, tarde o suficiente para desistir das alternativas. Estávamos por ali, ficamos. Entre cerveja e conversa fiada, sinto o cutucão no ombro. Braço estendido, meu celular em outra mão. Deixou cair aí, ele me diz, eu agradeço, e caminha até o balcão. Confiro os arranhões – nenhum desconhecido; descruzo as pernas e seguro o aparelho rente ao ventre, com as duas mãos. O intuito era evitar que a desatenção aos bolsos largos permitisse nova queda, mas foi visto com suspeita por quem há pouco devolvia o celular. Do balcão, olhava em minha direção. Virou o copo de cachaça e em passos tortos andou até minha mesa, carregando uma mochila enrolada por um colchão fino, de um cinza encardido e com o peso da história de uma vida. Falou "É seu mesmo?". Disse que sim, agradecendo novamente, de maneira mais efusiva. "Então desbloqueia ele aí." Ri, ao ser pego desprevenido. Desbloqueei o celular na frente dele, digitando com calma os quatro números, a vista embaçada de cansaço e álcool. Descortinaram-se alguns aplicativos e a imagem de fundo, formas quadradas, cores escuras. Tornei a agradecê-lo. Voltou para o balcão balançando a cabeça para os lados, imprecando, "Não sei não". Um colega aventou o constrangimento que seria um clique errado naquele momento. Retornou, cambaleando e carregando a mochila. "Se é seu mesmo mostra foto sua." Sem risos nessa hora. Cara inexpressiva, rolando mentalmente o mosaico de fotografias arquivadas no aparelho, tentando lembrar de alguma em que eu aparecia. A maioria era de citações ou de pássaros. No WhatsApp, sou uma árvore teofilotonense. No twitter, velha foto do beatnik descabelado, em preto e branco. Sem Instagram ou Facebook há alguns anos – ainda antes, na adolescência, em minhas fotos de perfil, eu estava de terno (festa de quinze anos da irmã, casamentos de primas) ou de costas (boné pra trás, roupa de corrida fazendo a comemoração do Usain Bolt). O restante da mesa tentava me ajudar, dizendo que o aparelho era meu mesmo. Me diz aqui: Sabe qual a chance de alguém acertar uma combinação de quatro dígitos de primeira?, uma em dez mil, mas ele parecia desinteressado em contas de análise combinatória. No fim lembrei da foto do linkedIn, rede social supostamente profissional, que nunca me rendeu um tostão, ainda assim a única em que apareço de frente, bem iluminado. Ampliei a foto e ele analisou alguns milhares de pixels, piscou, olhou pra mim por alguns segundos, voltou para a tela e deu de ombros. Retornou ao balcão, pediu a próxima. Tentei me concentrar nas conversas mas dali a pouco deslizava e batia o dedo no vidro da tela. Em minutos chegou o carro de um desconhecido. O chão molhado refletia os clarões dos faróis, o verde do sinal. No banco de trás, encarando o retrovisor, ensaio uma série de sorrisos sem graça.

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#crônica