Cadernos do Davi

cartas do meu bar, david neves

semana passada fui a uma daquelas sessões especiais que vira e mexe se manifestam no cine humberto mauro. exibiram alguns curtas mineiros raros1 na mostra Travessias. os comentários planejados ficaram a cargo da Izabela Silva, codiretora do filme em produção Eu não sou cineasta, sobre Rosa Maria Antuña, e pelo Rodrigo Sampaio, que pesquisou o contexto e as produções da Escola Superior de Cinema para o seu TCC: EDEIMAR MASSOTE: elaborações sobre percursos possíveis.

falaram bem e foram generosos: convidaram os parentes e amigos dos realizadores presentes na plateia para comentarem de maneira muito pessoal suas relações com as obras e com os cineastas. isso e uma contação de histórias – mistura mineiríssima de causos beirando a livre associação em certos momentos – que dificilmente algum crítico teria acesso de maneira individual. foi uma curtição só, mas não é o ponto deste relato.

hoje quero me deter num negócio que o Rodras mencionou de passagem, explicando o intercâmbio entre as discussões teóricas no CEC e a prática na ESC. contextualizando a rede de cineclubes, mencionou que muitas das reuniões terminavam em bares. isso me botou pensando no David Neves (um desses críticos-tornados-cineastas e que desde o princípio do movimento escreveu sobre o Cinema Novo – ele que por sinal é mencionado por nome no filme do Geraldo Veloso, e cujos documentários com o Humberto Mauro e com os escritores, em parceria com o Fernando Sabino, lembram o que o Maurício Gomes Leite fez com Otto Maria Carpeaux).

mais especificamente me botou pensando num livrinho dele, Cartas do meu Bar, publicado pela Editora 342 em 1993. trata-se de um livrinho curioso. curto, fragmentado, múltiplo: descrições de bares, memórias, poemas, aforismos, teses sobre o cinema nacional após a extinção da Embrafilme, um conto borgiano sobre uma arca com rolos de filmes desembarcando suspeitamente numa ilha de povos autóctones na Oceania, supostos diálogos entre Watson Macedo e Edgard Brasil, o necrológio do Joaquim Pedro de Andrade. entre outras coisas, tudo isso em suas <80 páginas. abaixo a transcrição.

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alguns trechos:

Quando passei à realização, em 1966, depois de alguns anos de relutância, descobri 'ao vivo' que não é pela teoria, não é na ideologia, não é na riqueza de produção que se extrai de uma história a almejada autenticidade. É num terrível corpo a corpo com esse fugidio meio de expressão. O cinema é uma permanente aferição da realidade com nosso estado de espírito. Sempre me chama a atenção as atividades de engenharia topográfica onde existem teodolitos ou outros instrumentos óticos montados sobre um tripé. É que, em tudo, elas dão a impressão de uma equipe cinematográfica que procura objetivar, com nitidez e equilíbrio, algum projeto subjetivo. (p. 34)

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O cinema pode ser:

  1. A maquilagem da vida.
  2. A revelação pura e simples da vida.
  3. A destruição da própria vida. (p.64)

O bar da Líder foi legendário na história do Cinema Novo. Situado no início da rua Álvares Ramos, em Botafogo, reunia nos fins de tarde toda a turma que durante anos batalhou para criar um movimento cinematográfico coerente. O chope gelado era sua atração principal. O espírito gregário do grupo foi por ele regado e até que deu bons frutos. O bar foi documentado cinematograficamente por Joaquim Pedro de Andrade no documentário "Cinema Novo" e por mim mesmo em outro filme curto: "Colagem3" Além do ponto de encontro com cenografia aconchegante, era fonte inspiradora de ideias e trabalhos. E lembrava a atmosfera do Alice's Restaurant, de Arthur Penn. (p.19)


O advento do vídeo, a difícil carreira do filme de curta-metragem, o impasse da cultura em geral e do cinema em particular, com as modificações por que passa o Brasil hoje, contribuem para certos atalhos audiovisuais, que sobretudo instigam, despertam a curiosidade e nos deixam esperançosos. A situação é curiosa, porque flutuante. Digo isso já que não há mandatário, por mais pirracento que seja, capaz de abandonar uma tradição cultural (p. 23)


Os outros, da minha turma, inventaram o trabalho quando ele se tornou escasso. Mantenho a noção lamentável de que não fui com eles. [...] Uma coisa básica: deixar ao acaso uma parcela da construção da estrutura, o que significa, por exemplo, filmar cenas que se integram no espírito geral, mas que não foram inseridas no roteiro, etc, etc. De forma que, ao fim, sua inserção seja como uma incógnita, que a montagem venha fazer inteligível. Coisa de bar, enfim. (p.43)


Se ela ficasse de viés, ou melhor, parada, só olhando... A ideia de cinema me veio assim, vendo o mundo de lado, sem ser notado... 'eavesdropping'. O presente livro tem todos os vícios dos livros de coletânea crítica, que terminam em estantes, como livros de referência.

Ficção, para o espectador brasileiro, é o filme estrangeiro (p.57)


  1. O bem-aventurado (Neville D'Almeida, BRA, 1966) | 10 anos | 14 min. O velho e o novo (Maurício Gomes Leite, BRA, 1967) | 14 anos | 30 min. Toda a memória das minas (Geraldo Veloso, BRA, 1978)| Livre | 18 min. Rosae Rosa (Rosa Antuña, BRA, 1968) | Livre | 5 min. Interregno (Flávio Werneck, BRA, 1966) | 12 anos | 10 min

  2. no site atualmente listam apenas o Telégrafo Visual, coletânea densa e extensa de sua produção teórica, mas o livreto do bar pode ser facilmente encontrado na estantevirtual

  3. Esse filme que o Geraldo Veloso chama de filme-irmão do seu curta Toda a memória das minas. Não o encontrei na internet.

#cinema #david neves #livro